
15º Concurso Leia Comigo! 2016/ FNLIJ
Foi com imensa alegria e orgulho que recebi, no ano passado, a notícia de que havia sido vencedora, com a mais que querida Juliana Borel, do Concurso Leia Comigo!/FNLIJ na categoria Relato Ficção. O texto pode ser classificado como uma autobiografia ficcional, ou seja, uma boa e grande mentira em primeira pessoa! A cerimônia de entrega do prêmio deu-se durante o Salão do Livro organizado anualmente pela FNLIJ e foi muito emocionante! O reconhecimento é sempre gratificante, não me envergonho de dizer. Não que escreva ou faça tudo em função disso, mas é um retorno amoroso ao que fazemos com dedicação e esmero. Chega de blá-blá-blá e vamos a ele, o texto premiado:
VOVÓ VIU O
LIVRO
Foi com Ivo que comi as uvas
da Vovó e aprendi a ler. Isso se deu quando eu era bem pequena. Num tempo do
qual não tenho muitas lembranças concretas, mas, sim, cheiros, sabores,
sensações.
Esse momento em que comecei a
ler, por exemplo, é ainda vivido como uma mágica. Por mais que todos os
alfabetizadores, pedagogos e outros tantos estudiosos debatam e analisem o
tema, a verdade é: ninguém ainda conseguiu descrever como se dá aquele instante
preciso em que algo que até então não fazia o menor sentido se transforma na
porta aberta para um outro universo: a aprendizagem da leitura.
Eu adoraria reviver essa
experiência, daria tudo para isso. Gosto até de brincar de que não sei ler
quando tenho a oportunidade de me deparar com um texto em algum idioma bem
distinto do português. Mas não funciona muito bem, não. Como já vivencio
conscientemente o processo, a brincadeira perde a graça. Falta aquele olhar da
primeira vez.
Minha professora no ano em que
aprendi a ler chamava-se Dona Margarida. Naquele tempo, as professoras eram
Donas e Senhoras, nada de tias e vocês. Mas isso não significa que ela não
fosse simplesmente venerada por mim. Uma das sensações prazerosas da escola era
a de me perder no brilho do reflexo do sol nos longos cabelos castanho-claros
de Dona Margarida. E eu sonhava que, quando crescesse, iria ser igual a ela:
linda, boa e sorridente. Julgo-me completamente desautorizada a afirmar se o
tal sonho se concretizou ou não.
Aprender a ler veio também com
dois outros prazeres sensoriais. Um, o gosto do café com leite morninho servido
na hora da merenda num copo de plástico azul. Nunca mais, em lugar nenhum,
consegui tomar um café com leite que se igualasse àquele. Eu já até desisti de
procurar; será em vão essa demanda. O outro, o cheiro da goma que minha avó
preparava para engomar as fitas com que fazia os laços de minhas marias-chiquinhas
para ir à escola. Eu ficava absorta vendo aquelas fitas começarem tão molengas
e depois ficarem tão durinhas e se transformarem naqueles laços imensos que
ficavam parados no ar enquanto eu caminhava até a escola. A minha preferida era
a fita azul celeste. Não sei se pela cor exatamente ou por imaginar que pudesse
carregar um pouco do céu nos meus cabelos.
Nessa época, morávamos muitas
pessoas no mesmo apartamento: minha avó, minha mãe, minha tia Júlia e meu tio,
meus primos e minha outra tia, a Violeta. Além de mim, é claro. Eu dividia um quarto com minha mãe, minha avó
e essa minha tia Violeta. Era um apartamento de dois quartos e o movimento era
incessante. Hoje sei exatamente em que situação econômica a família se
encontrava, mas, para uma criança, nada disso tinha importância se ela se
divertia, recebia atenção e não faltava comida à mesa.
Minha mãe, meu tio e minha tia
Violeta trabalhavam o dia todo, assim eu mal os via. Meu primo mais velho
estudava num colégio interno, o outro era um bebê. Minha tia Julia se ocupava
da casa e do bebê. Dessa forma, quem ficava comigo e foi minha grande
companheira era minha avó.
Em nossa casa havia
pouquíssimos livros. Nem Bíblia existia, porque era uma família comunista,
então nada de ópio do povo dentro de casa. Lembro-me de uns livros grandes, de
capa dura e verde, cheios de figurinhas, com umas páginas com grandes imagens
coloridas, que eu adorava mesmo antes de saber ler, exatamente por conta das
ilustrações. Depois vim a saber que eram enciclopédias compradas por meu avô, —
que não cheguei a conhecer —, antes de falecer e consistiam no maior tesouro de
minha avó.
Por conta disso, as primeiras
histórias que ouvi quando criança não eram as que estavam nos livros, mas as
que minha avó trazia consigo desde sua infância, mescladas aos causos escutados
nos anos em que viveu numa fazenda no interior do Uruguai, em plena pampa, em
meio a contos de valentes “gauchos” (assim sem acento mesmo!) e intrépidos
“charruas”, os indígenas que povoavam aquelas terras e que foram dizimados.
Histórias de cavalgadas e assombrações, donzelas traídas e abandonadas,
crianças raptadas por lobos e pumas. Eu as escutava com um misto de terror e
êxtase, ao mesmo tempo torcendo para que elas terminassem e eu fosse dormir e para
que elas não findassem jamais e eu pudesse viver naquele tempo tão diferente de
tudo o que eu conseguia imaginar. E as histórias invadiam meus sonhos, às vezes
em forma de pesadelo, às vezes em forma de sonhos lindos que eu transformava em
desenhos no dia seguinte.
Quando aprendi a ler, um certo
dia, porém, minha avó, ao me ver maravilhada com a nova descoberta, disse que
iria me levar a um lugar muito especial: a biblioteca municipal de nosso
bairro. Soube depois que ela havia comentado com uma vizinha que eu aprendera a
ler e a tal vizinha a aconselhara que fizesse isso. Ao chegarmos lá, achei aquele lugar a
maravilha das maravilhas, ou “o suco dos sucos”, como eu viria a dizer depois
de ser apresentada a uma tal menina do nariz arrebitado. Um monte de livros, de
todos os tamanhos, formas, cores ali me esperando, ávidos para que eu os
escolhesse e os retirasse daquela vida pacata e poeirenta das estantes. A moça
da biblioteca perguntou se eu sabia ler direitinho e me deu um volume dizendo
que eu iria gostar muito daquele livro.
Que moça sabida! Acertou em
cheio. Comecei a ler Reinações de
Narizinho e não conseguia mais parar. Eram horas a fio devorando aquelas
aventuras, rindo às gargalhadas com as primeiras palavras de Emília, amando de
paixão aquela avó quase tão maravilhosa como a minha, desejando que meu primo
fosse igual ao Pedrinho.
Minha avó começou a ficar
cismada. Me chamava para ir à pracinha brincar, mas eu só aceitava se a turma
do Sítio fosse junto. Me chamava para fazer cocada preta com ela e eu demorava
a chegar à cozinha porque faltava sempre mais um pouquinho para terminar aquele
capítulo.
Até o dia em que ela me
flagrou aos prantos num canto da casa com o livro no colo. Engolindo lágrimas e
o que escorria do nariz, acabei desembuchando o que me deixava tão infeliz: é
que o livro ia acabar. Faltava pouquinho e eu ia ficar sem aqueles amigos para
sempre. Foi quando ela teve aquela ideia genial (as avós são a melhor invenção
da humanidade!): por que eu não lia para ela em voz alta o livro todo de novo?
Eu achei aquela proposta meio maluca, mas ela me disse que, como ela era
uruguaia e o Lobato era brasileiro, ela nunca tinha lido os livros dele.
Topei. E assim começamos uma
nova história. Agora era a neta quem lia as histórias de Dona Benta e seu Sítio
para a avó. Que ouvia encantada e se divertia da mesma forma que a neta,
voltando à infância de sua fazenda por meio das estripulias de Emília e
companhia. Naquele tempo eu nem desconfiei. Fiquei achando durante um bom
período que ela tinha inventado aquilo tudo só para me agradar e arranjado uma
maneira de que eu ficasse mais um tempo com o livro tão amado. Só muitos anos
mais tarde fui conhecer a verdade por trás de tudo. Minha avó era analfabeta.
Mal sabia assinar o nome. Criada no interior do interior, numa família tradicional,
em que mulher não precisava ler, ficou assim.
Mas Monteiro Lobato veio mudar
tudo isso. Com vontade de ler por sua própria conta os livros para adultos do
meu autor preferido, ela também começou a juntar as letrinhas e a magia
aconteceu. Mas essa já é outra história.
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| Entrega do diploma da premiação/ 2016 |
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| Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil/ Seção da IBBY |




